Corpo, ilustre desconhecido

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Corpo, ilustre desconhecido

Não podemos nos sentir plenos enquanto não tomarmos real consciência de nosso físico

Texto Jeanne Callegari • Fotos Gustavo Arrais

As palavras no computador me chamaram a atenção. “A gente vive em uma cultura que aliena nosso corpo”, dizia a atleta e escritora Marília Coutinho, em uma entrevista. “Nossas instituições criam um indivíduo que vê a mente em primeira pessoa, mas pensa o corpo em terceira pessoa.” Na hora, me identifiquei. Tendo construído minha identidade em torno da mente (a moça inteligente, que gosta de teorias), costumava tratar o corpo com desdém; não o exercitava, não o alimentava direito, não cuidava de seu descanso. Há algum tempo, porém, eu descobrira o quanto isso me era nocivo, e decidira mudar. Mas não é fácil alterar hábitos de uma vida toda. E assim, continuava desconectada do meu corpo. Desconectada de mim.

Então me veio a ideia de escrever uma reportagem sobre o corpo. Desde o início, uma contradição: como escrever sobre algo que, essencialmente, vivemos na prática, em movimento? Na hora de digitar o texto, senti dores nas costas, e também um sufocamento, típico da angústia de não saber como começar; recomecei várias vezes, sempre com um aperto no peito. Aos poucos, caía a ficha: assim como tudo que fazemos na vida, escrever é físico; existe a mente, que pensa e elabora, mas ela está ligada ao corpo, ela só existe no corpo. O que sentimos e pensamos influencia no físico, e vice-versa, como sabem todos que já tiveram uma enxaqueca depois de brigar com o ser amado.

A medicina ocidental já pesquisou muito sobre a somatização, ou seja, como as emoções afetam nossa saúde. Mas as relações entre nossa mente e nosso corpo são mais profundas do que isso. Se os médicos não encontram a causa para a dor de um paciente, por exemplo, dizem que “é psicológico”; como se o psicológico não fosse parte do corpo. Especializada, a medicina trata dos ossos, dos olhos, da pele como se fossem partes separadas, independentes. Mas como cuidar de uma dor nas pernas sem considerar as origens mais profundas que essa dor pode ter?

É no corpo que, desde a infância, reprimimos sensações. “Na rigidez, retração e dores dos músculos das costas, membros, diafragma e também do rosto e do sexo, está escrita toda sua história, do nascimento até hoje”, escreveu a fisioterapeuta Thérèse Bertherat, no clássico O Corpo Tem suas Razões (Martins Fontes). Para lidar com as angústias de não poder transformar o meio, as crianças calam o próprio corpo. “Você dobrou-se como pôde e, para conformar- se, você se deformou”, diz Thérèse. Uma criança que precisa de muito contato, por exemplo, chora porque se sente carente. Contudo, se ela não consegue o “colo” de que necessita, irá engolir o choro, pois não quer sentir aquela angústia para sempre. Assim, prendendo a respiração, sufocando as lágrimas, encurvando os ombros, vamos reprimindo as dores. Mas acabamos, também, reprimindo outras coisas. Uma delas é a capacidade natural do corpo de autorregulação. “Criamos couraças musculares, camadas de proteção, e com isso bloqueamos a percepção de todo o corpo.

Perdemos a capacidade de perceber doenças, de ver o quanto precisamos descansar”, diz Sandra Volpi, psicóloga do Centro Reichiano, de Curitiba. Couraças formadas por ombros caídos, costas curvas, joelhos tortos não são as únicas perdas que o corpo sofre na infância. Força, agilidade, coordenação… Nossa capacidade física vai se perdendo. A cada “menino, para de correr!” ou “menina, desce daí”, deixamos de desenvolver um pouco do nosso potencial. As mulheres acabam sofrendo ainda mais. Por serem consideradas frágeis, seus movimentos são mais restritos: devem ser comedidas, não pular feito meninos, não escalar coisas. Aos garotos é permitido um pouco mais de movimentos. E, assim, eles se desenvolvem melhor fisicamente. O exercício é mais fácil para eles. E, apesar disso, elas é que são mais cobradas para emagrecer, “caber” em um padrão de beleza.

Marília Coutinho chama o estranhamento do corpo de alienação corporal. “Alienação significa que algo é separado de um sujeito”, escreve no livro Estética e Saúde (Phorte), lançado em agosto passado. É o afastamento do ser humano de algo que lhe é essencial: sua corporalidade, a consciência de si mesmo. É uma forma de mutilação. Claro, o corpo não deixa de existir. Mas, sem perceber, passamos a enxergá-lo como estranho, algo que nos desobedece, que engorda, emagrece e fica doente à nossa revelia. Vira uma espécie de criança malcriada, que podemos até mesmo rejeitar por não seguir nossos desígnios.

Separação da mente

A alienação corporal surge de uma forma de pensar muito antiga: a ideia de separação entre mente (ou alma) e corpo. Na Grécia antiga, Platão falava do mundo das ideias, que eram perfeitas, ao contrário de suas manifestações do mundo físico, que sempre tinham algo de meio torto. Pense numa forma usada para moldar biscoitos. A forma é perfeita; seria a alma, a realidade verdadeira. Já os biscoitos prontos são todos diferentes: um sai mais gordinho, outro mais queimado. Os biscoitos são o corpo, o mundo material. Corpos que devem ser domados, superados. “Como a alma era imortal, era considerada mais nobre, superior ao corpo”, diz Denise Bernuzzi de Sant’Anna, professora de história da PUC-SP e autora de Corpos de Passagem (Estação Liberdade).

Essa visão é predominante em muitas religiões. O cristianismo, por exemplo, fala em alma imortal, que o corpo é a fonte do pecado; deve, então, ser punido. A filosofia hindu divide o mundo entre purusha (mente/espírito) e prakriti (substância material). No Ocidente, essa visão atingiu o ápice com Descartes; sua famosa frase, “penso, logo existo”, deu margem para que a mente fosse considerada superior ao corpo.

Uma vez estabelecida a separação entre mente e corpo, o que acontece? Muito cedo, e sem perceber, acabamos pendendo para um dos lados. Corpo ou mente: não podemos ter os dois. Lembra da escola? De um lado, o grupo dos “esportistas”; do outro, os “nerds”. Raras eram as crianças que podiam transitar entre as duas esferas. “Quem vai para o lado da mente acaba por achar que os saberes do corpo não lhe pertencem, não lhe dizem respeito”, diz Leonardo Caramori, mestre de tai chi chuan. E o corpo fica ali, meio deixado de lado.

Claro, o dualismo não é a única visão existente. A teoria oposta é o monismo, que considera que não há divisões na essência das coisas. Assim, corpo e mente não são fundamentalmente diferentes, e sim parte de um todo complexo. Entre os antigos, Parmênides defendia essa visão; entre os modernos, Spinoza. Para esse filósofo, o mundo era composto de uma substância neutra, da qual tanto o mental quanto o físico eram propriedades. Seja como for, essa visão sempre foi minoria. Faz muito pouco tempo que os pensadores começaram a considerar, em suas teorias, a natureza corporal do ser humano, o fato de que existimos no espaço (nós nos movemos, ocupamos espaço no mundo, trombamos uns com os outros) e no tempo (envelhecemos, temos uma expectativa de vida limitada). Não existimos sem nosso corpo: não é possível deixá-lo do lado de fora da sala de aula, assim como não é possível deixar a mente na porta da academia.

Forma x corpo

A essa altura, você deve estar se perguntando: “Como o corpo pode ser negligenciado na sociedade, se tudo que vejo por aí é a busca de um corpo perfeito, um padrão de beleza único?” De fato, não são os filósofos nem os físicos que estampam capas de revistas; não é em busca de um cérebro melhor que as pessoas se matriculam em academias. Mas buscar um padrão de beleza é bem diferente de termos consciência de nosso organismo. “O ideal de alma elevada foi substituído por um ideal de boa forma”, diz Denise de Sant’Anna. “O dualismo continua, mas a oposição agora é entre o corpo carnal, mortal, que fica doente, envelhece, e um corpo ideal, sempre jovem e limpinho.” Quando buscam as academias, muitas pessoas não estão preocupadas em conhecer melhor o próprio corpo, integrar-se, ter mais saúde; o que procuram é um jeito de se encaixar nesse padrão ideal, ter uma forma para exibir. “Dizem que há uma corpolatria. Na verdade, é uma formolatria: culto à forma. Corpo cada um tem um, único. A forma, não. Ela é platônica”, diz Marília Coutinho.

Marília conhece bem a história da alienação corporal. Criança, tinha dificuldade de relacionamentos e de lidar com as emoções. A saída veio aos 11 anos, quando descobriu o esporte. Acalmou- se; aos 14, foi campeã de esgrima. Mas veio a filiação ao Partido Comunista, que dizia que esporte era “coisa de burguês”, e ela parou com o que mais gostava. Na mesma época, foi estuprada por lideranças políticas. Para defenderse, Marília fechou-se ao corpo. Chegou a maltratá-lo com drogas e automutilação. Aos 19 anos, abandonou o partido e mergulhou nos estudos, mas então o estrago estava feito. Seguiu a vida como bióloga e acadêmica brilhante, mas cheia de angústia. Diagnosticada como bipolar, segurava a onda com remédios. Mas foi só após uma tentativa de suicídio que ela percebeu: o exercício era a forma que ela encontraria de ficar sã. Um ano depois, era campeã brasileira de levantamento de peso. No esporte de força, ela se encontrou. Integrou-se.

Para Marília, a reconexão por meio da atividade física passa por estar presente, inteiro, em cada gesto. Por isso, critica o modelo tradicional de academia. “Você aprende a lidar com as máquinas. Não com seu próprio corpo”, diz. Joel Fridman, sócio da Crossfit Brasil, em São Paulo, concorda. “As habilidades de que um atleta precisa são as mesmas que sua avó necessita: força, equilíbrio, agilidade… Ela precisa conseguir se levantar sem dificuldade, por exemplo”, diz. Por isso, na Crossfit, trabalha- se o corpo todo; são movimentos globais, funcionais. Lá não há espelhos: o aluno precisa aprender a se conhecer.

Caminhos iluminados

Ao ouvir Joel falar sobre espelhos, eu me lembro de minha primeira professora de ioga, Lourdes. Ela dizia o mesmo sobre sentir o corpo. Aos 74 anos, praticante e professora há décadas, executa movimentos que mal consigo compreender. Foi nessa aula que comecei o caminho de descoberta do meu corpo: cheguei travada, sem alongamento, músculos frouxos. Aos poucos, ela foi explicando que tudo podia ser trabalhado. E ensinava, cheia de paciência. Praticando todo dia, vi, maravilhada, que conseguia tocar o pé com as pernas esticadas; que os braços podiam ser fortes; que os saberes do corpo são essenciais para o auto-conhecimento.

Ao me mudar de cidade, sem o auxílio de Lourdinha, tive dificuldade de encaixar a ioga na rotina. Cometi um erro: deleguei meu aprendizado a um mestre. Quando, na verdade, é responsabilidade de cada um encontrar sua consciência corporal. Pessoas sábias podem ajudar, mas, ao final, somos nós mesmos os responsáveis por essa procura. Estamos acostumados a deixar para as “autoridades” o arbítrio de nossas vidas: eles dizem o que devemos comer, quais exercícios praticar. Nada de mau em procurar a orientação de um especialista. Mas é preciso ouvir a própria voz também, porque cada corpo é único. Assim como os alimentos, certos exercícios e técnicas se adaptarão mais a umas pessoas que a outras.

Mas então é preciso fazer exercício?, me pergunta o leitor, ressabiado. Sim e não. Ninguém é obrigado a fazer algo que considere maçante. “O prazer é um componente importante da equação”, diz Marília. Mas, se a ideia é fazer as pazes com o corpo, reencontrá-lo, não dá para ficar só na teoria: é preciso trabalhá- lo. Não que seja fácil. Pode doer, cansar, dar trabalho; isso sem contar as emoções que vêm à tona. Técnicas como osteopatia, Alexander e fisioterapia especializada em consciência corporal são formas de descobrir o corpo, assim como a ioga. E mesmo o exercício em si, por que não? Pode ser ótimo, desde que feito com consciência, sem intenção de adestrar o corpo, e sim pensando em explorar suas possibilidades.

Uma dessas possibilidades é, inclusive, a iluminação. Não a ascese por meio do sofrimento de muitas religiões, mas a transcendência. A antropóloga Chicako Ozawa-De Silva traz para o debate a visão sobre o corpo de dois pensadores japoneses. Um deles, Ichikawa Hiroshi, escreveu um livro chamado The Body as Spirit (“O Corpo como Espírito”), em que afirma que as coisas que acreditamos ou dizemos ser de natureza espiritual não podem existir sem seus aspectos físicos, e vice-versa. Nossa própria existência unifica o nível espiritual ao físico. Para Yuasa Yasuo, a integração entre mente e corpo é um potencial, que podemos atingir por meio de práticas de autocultivo, como a meditação. Um potencial do corpo que, se nos negarmos a explorar, deixaremos de conhecer por completo.

Para saber mais
O Corpo Tem suas Razões, Thérèse Bertherat, Martins Fontes
Estética e Saúde, Marília Coutinho, Phorte

Dra Íris Miranda – Nutricionista – CRN 24352Especializada em Nutrição Esportiva. Espaço Acolher. Calçada dos Narcisos, 13 – Centro Comercial, Alphaville. Barueri-SP (11)41938952

 

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